A Globo não mente

Antes de mais nada, saiba que a Record, a Band, a Folha de São Paulo e outros grandes veículos, desse ou daquele lado, também não. O que não quer dizer que já não mentiram algum dia. Mas assim como os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro fazem enviezadamente, vamos aqui focar no jornalismo da Globo (que para muitas pessoas é um sinônimo do que seria imprensa) e sua cobertura sobre a pandemia do coronavírus.

O jornalismo na Era da Informação usa mecanismos bem mais sofisticados que a mentira, mas para sabermos quais, precisamos antes entender alguns pontos.

Existe algo muito belo na atualidade, e mal aproveitado pela população, chamado fact-checking (checagem de fatos) englobado dentro do jornalismo investigativo – algo como um metajornalismo, que investiga a si mesmo – mas que pode ser praticado por qualquer um com acesso à internet. A Globo está ciente disso.

Me perguntava por que o termo “fact-checking” não é tão popular quanto o famigerado “fake news”. Não precisei queimar muitos neurônios para deduzir que é justamente porque o primeiro mata o segundo, mas o segundo é muito mais saboroso. Por exemplo, é muito fácil verificar que a pandemia de gripe A (H1N1), em pouco menos de um ano e meio, entre 2009 e 2010, matou 2146 pessoas no Brasil. Imagino a decepção do criador da fake news do H1N1 ao fazer o fact-checking, se tiver feito. Certamente para ele, ou eles, foi mais vantajoso adequar sua vontade de defender o presidente aos fatos e comparar 18 meses de morte do surto de gripe A com um mês desde a primeira morte pelo Covid-19, ignorando totalmente o período de tempo e, de quebra, demonizando o Lula mais um pouco.

A raiva dos bolsonaristas é essa: a Globo não nega os fatos para distorcer a realidade. É claro que a emissora não é santa. Lembra que disse que ela estava ciente da existência da tal internet? Pois bem, ela sabe que existem milhões de pessoas no país com mouse em punho dispostos a fazê-la perder credibilidade. Se fosse hoje em dia, a análise crítica da cobertura das Diretas Já em 1985, ou do debate Lula versus Collor de 1989, não caberia aos livros de história – quando ninguém nem ligava mais para o que aconteceu ou tinha deixado de acontecer -, mas a milhões de opiniões em questões de minutos. Sairia ou sai muita bosta, mas também há gente séria e de respeito na internet que capta qualquer situação em questões de segundos. Como defender seus próprios interesses em um mundo em que não se é mais o fabricante da verdade?

O grande estudioso de jornalismo, José Marques de Melo, falecido há pouco tempo, sempre alertava para outros métodos usados pela imprensa para que não tenham que recorrer à mentira: a seleção e filtragem de notícias, a omissão, a isenção e a redução de incidências. Não é lá muito nobre utilizá-los, mas são todos justificáveis, seja pela questão do tempo televiso ou do espaço, seja por escolha editorial, que é um direito da liberdade de expressão no nosso país, aceitem isso.

O truque que a Globo mais adora certamente é a omissão. Deixar passar de vez em quando, como quem não quer nada, algo passível de nota, o que gerou o famoso meme “isso a Globo não mostra”. Um meme que é uma faca de dois gumes, tanto que a própria emissora adotou em um quadro do Fantástico, porque, ora, é realmente impossível mostrar tudo, o que torna mais fácil mostrar só o que se quer. Qual a vantagem, então, das matérias da Globo sobre as fake news de whatsapp? O medo que a Globo tem de perder a credibilidade, algo que os bolsonaristas não temem, porque (pelo menos até essa pandemia) o bolsonarismo representava A Verdade  e quem fosse racional ou incrédulo diante desta, estava errado, era certamente comunista ou alienado.

Diante de um Bolsonaro isolado (em Sinop, tem pecuarista criticando ele, pecuarista!) que insiste no isolamento vertical – algo que comprovadamente não deu certo em países como Inglaterra e Itália – a Globo aproveita para recuperar o respeito por ele destruído, de tal modo que está esquecendo de outro subterfúgio que adorava dizer que tinha: a isenção. Seus repórteres estão obviamente revoltados com tanto desrespeito, tanta chacota, por parte do presidente, o que leva a um suposto exagero na cobertura da “gripezinha”. Muitos teorizam dizendo que é a isenção que leva à verdade. Não sei quanto a isso. Sempre fui fã do jornalismo opinativo, é muito mais honesto. Outro grande jornalista, Ricardo Noblat, afirma que dois repórteres podem narrar um mesmo acontecimento de forma diferente, mas se forem bons repórteres não divergirão no essencial. Nesse sentido, uma notícia satisfaria suas duas grandes vertentes, a informação e a análise. Caberia ao receptor a decodificação da mensagem e aí está o abismo.

No frigir dos ovos, quando a crise passar, após os corpos recolhidos e as pontes religadas, Bolsonaro e Globo estarão mudados, por que é assim que as coisas continuarão a mesma. O presidente corre risco de ser o homem que teve oportunidade e desperdiçou a maior chance nesse país, que tinha apoio popular e oligárquico para construir não um governo, mas um projeto de poder, mas perdeu tudo por deixar transparecer sua arrogância, seu deslumbramento, seu telhado de vidro. O que foi a primeira versão da MP 927, mais famosa por tirar quatro meses de trabalho na cara dura dos trabalhadores sem nenhuma compensação? Acuado, está tentando defender as classes mais altas que financiaram sua campanha, mas o povo está começando a sentir a pulguinha coçando atrás da orelha e abrindo os olhos para o seu capitalismo sórdido, aquele em que os pobres podem até ter certo bem-estar se, e somente se, os ricos garantirem o seu antes. O capitalismo à brasileira, em que não importa muito onde se viva desde que EU viva bem. O capitalismo irreflexivo, em que se deve agradecer por ter um emprego, independente das condições e salário. O capitalismo que ora noite e dia por uma promiscuidade gostosa entre Estado e Igreja para ajudar a manter a ordem, o medo e a culpa.

A Globo, por sua vez, tem uma grande dívida com o povo brasileiro. Por meio do seu jornalismo de elite, é parcialmente responsável pelo enfraquecimento, pela incompreensão, pelo desdém que a imprensa é recebida na atualidade. É uma emissora que não consegue dialogar na língua do povo (algo que Bolsonaro sabe fazer). Ela pode até tocar as pessoas através de novelas e BBB, mas quando se trata de jornalismo não se conecta à maioria da população. De memória, lembro que Marcio Canuto conseguia fazer isso, mas era relegado a amenidades ou carnaval.

A quarentena/isolamento recomendada pela OMS, senadores, governadores e prefeitos poderia ser aproveitada pelas pessoas para pôr um freio nas polarizações. Para um retorno à individualidade, ao pensamento próprio e, por conseguinte, à liberdade coletiva. Posso ter omitido alguma coisa, mas é o sossego que sonho.

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